segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Se eu escrevesse um livro épico começaria assim...

Giromo acordou, numa manhã igual a tantas outras. Lá fora o nevoeiro carregado de ar frio fazia ranger os dentes aos pássaros mais madrugadores que permaneciam por ali durante a estação fria, à medida que derretia a geada acumulada na borda dos carreiros após uma anormalmente fresca noite de lua nova, facilmente confundível, pelos mais distraídos, com um avantajado quarto minguante.

Assim que saíu porta fora, completadas que estavam as tarefas de higiene pessoal, que minuciosamente levava a cabo antes de abandonar a comodidade do seu lar, invariavelmente, a cada madrugada. Era assim desde que perdera a sua mãe naquele fatídico jogo de cartas, e que perdera também o gosto de viver, limitando-se a existir apenas para cuidar de quatro irmãozinhos que Vitória, a velha galinha poedeira, deixara órfãos há coisa de mês e meio. Não raras vezes recordava com nostalgia, que por pouco não estrelara dois deles, num dia que lhe deu o desejo de molhar o pão numa gema mal passada. Felizmente uma soltura inesperada apossou-se dele naquela hora, ficando 3 dias confinado a uma dieta de chá e pão seco. Foi o suficiente para que os ovos chocassem e dele saíssem aquelas quatro amareladas criaturas de bico ruidoso, que o impediam de cortar os pulsos com a navalha ferrugenta que fora de seu avô depois de ser de seu pai, e que sempre carregava com ele tal qual um amuleto espanta-espíritos, ou espanta ladrões.

Giromo saíu então para a gélida madrugada, semi-cerrando os olhos, forçando-os a distinguir as formas escondidas para lá do neoveiro, caminhando com as suas botas de pele de cabra que tanto gostava, quando calcou uma poia. Amaldiçou a sua má sorte em voz média alta...Pisar merda é sinal de dinheiro, diz o povo. Giromo não era supersticioso, mas pelo sim pelo não apertou a pata de coelho que sempre transportava na algibeira juntamente com a navalha, e bateu três vezes na madeira do terço que trazia ao pescoço...É para afastar a má sorte, dizia ele aos amigos que zumbavam do peculiar objecto, pois cristo só viria ao mundo dali a muitos anos e a cruz não simbolizava mais do que dois paus atravessados. Mas para Giromo era mais que isso...lembrava-lhe o pai que tantas vezes o mandou ir jogar ao pau com os ursos, nos poucos dias que trabalhou com ele, como aprendiz de carpinteiro. Aquela cruz moldara-a ele com as próprias mãos, e a navalha de bolso...era um facto, jeito para a profissão do pai era coisa que não tinha.

Talvez por isso tenha escolhido tornar-se peixeiro...e aí ía ele, para mais uma jornada no rio Secum. Mas aquele dia era diferente...tinha se esquecido do equipamento para a pesca à enguia...paciência, cingir-se-ía ao achegã. Talvez o destino quisesse assim, tal como quis atrair o seu olhar para a estranha pedra coberta de lodo que jazia na outra margem. Tal visão intrigou-o, não só pelo formato da pedra, mas porque não havia pedras por aquelas bandas, apenas agriões. Sem saber como nem porquê, Giromo atirou-se à agua, e esbracejou. Aprendera a nadar tinha apenas 6 anos, com um Labrador Terrier que lhe fora oferecido por motivo do seu 10º aniversário, ou do 5º, já não se recordava bem. Se tinha um defeito, era a falível memória...e o parco talento para a carpintaria...mas foi nadando à cão que alcançou a lamacenta barreira, que albergava aqui e ali moribundos cadáveres de rãs, outrora saltitantes batráquios.

Ao pegar-lhe não tardou a perceber que a invulgar pedra, era tão invulgar por não ser uma pedra, pois nesse memo instante sentiu o pulsar de uma vida vindo do seu núcleo. Era um ovo, mas não lhe apeteceu estrelá-lo, sabia que este era especial. Sim, tinha a certeza, escalfado com ervilhas daria um melhor petisco, mas hesitou quandou os seu pensamentos lambões foram interrompidos pelo ruído estaladiço que vinha da casca. Estava a acontecer, o ovo ía ecludir. Será um dragão, como contam as lendas e as cantigas antigas? Atentando ao avantajado tamanho bem que poderia ser, divagou Giromo ao arregalar os olhos para ver um fucinho largo e curvo surgir do primeiro buraco. Quando finalmente o dragão recém nascido se livrou da melosa casca, Giromo percebeu...o seu dragão era uma anafada cria de hipopótamo!
Assustado tacteou o bolso em busca da navalha, ainda não a limpara desde que estivera a amanhar o peixe, pelo que esta estava gordurosa e escorregadia. Amaldiçoou-se por isso. Raios me partam se os hipopótamos agora nascem em ovos! - disse Giromo, quase ao mesmo tempo em que um relâmpago despencava no alto da sua cabeça, e ele tombou firme e hirto como uma barra de sabão azul macaco.

Acordou com as lambidelas do hipopotamo, que assim que ao vê-lo abrir os olhos lhe ferrou carinhosamente os dentes no enorme nariz que possuía, herança de sua mãe. Doía-lhe a cabeça, como numa manhã de ressaca, mas ainda assim bem menos que a respeitável narigueta, que começava a inchar. Praguejou mais uma vez, para de seguida dar graças por estar vivo. Ninguém até hoje sobrevivera à queda de um raio na moleirinha, ele era o primeiro, era especial. Assim que este pensamento o abandonou, não se conseguiu conter a tirar a roupa, e mergulhar nas gélidas águas do Secum, tal como veio ao mundo. Estava um frio de rachar, mas não foi por isso que momentos mais tarde se arrependeu da sua decisão, mas pelo lagostim que lhe fechou as tenazes em redor do escroto...O seu uivo de dor acordou a floresta em redor, os pássaros voaram para longe alarmados, os esquilos esconderam-se espalhando as bolotas que transportavam no regaço, e até o pequeno hipopotamo se viu forçado a soltar um pum, enquanto se escondia atrás duma moita.

To be continued...